COMO ERA A VIDA DOS SERTANEJOS NAS DÉCADAS DE 70, 80 E 90. Por Padre Djacy Brasileiro
Como
sertanejo, que conhece um pouco a história sofrida e difícil dos conterrâneos,
aliás, convivo noite e dia com os mesmos, pois moro no sertão paraibano,
mostrarei um pouco como era a vida desseshomens e mulheres desta região tantas
vezes esquecidos, marginalizados e ignorados até o limiar do ano dois mil e
três, quandonovos horizontes começaram a despontar, trazendo-lhes bem-estar e
dignidade.
O que vou
expor é o que ouvi e ouço do povo do sertão sobre seu passado.São relatos
comoventes, tristes, que falam de suas pelejas, de suaslutas renhidas,
dificuldades e sacrifícios, como também da cruz da injustiça social, da
humilhação e do desprezo. São histórias macabras que ficaram marcadas indelevelmente
na memória dos fortes e valentes sertanejos:
-Padre Djacy,
na seca de 70 a gente era humilhado, tratado com desprezo.
-Botei minha
família em cima de um caminhão velho, chamado pau de arara, e fomos embora para
São Paulo. Lá, a gente sofreu feito um diabo. Era tanta humilhação.
-Fui embora
pra São Paulo em 68. Padre, me lembro que coloquei minha mulher e meus filhos
no caminhão pau de arara.Eita sofrimento. Passamos vários dias em cima do
caminhão.Não havia nenhum conforto,porque os bancos eram de madeira e tudo
coberto de lona. A gente parava no meio da estrada para comer e fazer outras
coisas.Quando a gente chegou São Paulo, só tinha poeira na roupa, no cabelo, no
corpo e nas malas. Quanto sofrimento, meu Deus!
-Meu amigo de
2000pratrás, sertanejo não tinha valor, era visto como bicho do mato, agente não
era considerado não. A gente era ignorado pelos os homens do poder. Os
políticos nos humilhavam demais.
-Em tempo de
seca, eu me lembro como se fosse hoje, havia saques. As pessoas com fome saqueavam
feira, escola e até hospital. A fome era grande. A gente tinha que arrumar
comida pra matar a fome da família. Era a gente correndo com saco de arroz ou
feijão na cabeça ea polícia correndo atrás. Eita tempo da molesta. Ave Maria!
-Padre, meu
irmão morreu de acidente na estrada. Foi assim: ele foi pra feira e com os
outros agricultores carregaram alimentos de umas bancas de feira. Ele botou o
saco de arroz na cabeça, vinha correndo quando de repente um caminhão que vinha
atropelou meu irmão. Não posso me lembrar. Meu irmão morreu carregando alimento
pra matar a fome dos filhos e da mulher.
-Em tempo de
seca, o governo mandava pra nós um arroz chamado buga. Era um arroz estranho, diferente,
parecia com comida de passarinho. E a gente comia porque era o jeito. Mais
nunca vi esse arroz na minha vida. Não sei onde o governo arrumava esse arroz
pra mandar pra nós. Eitabuga ruim da peste.
-Olha seu
Padre, eu tenho 85 anos e não minto. Vou dizer uma coisa: eu me lembro que em
tempo de seca, minha mãe fazia angu de uma raiz chamada pau mocó. Minha mãe
lavava dez vezes essa raiz para tirar o amargo. A raiz amargava demais. Ainda
assim, o angu ficava amargo. A gente comia porque não tinha outra coisa.Eitasofrimento,
meuDeus, não posso lembrare meus olhos ficam cheios de lágrimas. Tempo ruim.
-Na seca de
98, o governo mandava pra nós feijão tão ruim, tão duro, que não tinha fogo que
desse jeito. O feijão não cozinhava não. A gente tirava do fogo e estava do
mesmo jeito. O jeito era passar no liquidificador, mesmo assim ficava ruim.
Esse governo nos humilhava demais.
-Uma vez, eu
dei o feijão do governo pra a minha bacorinha.Ah,meu Deus, a bichinha ia
morrendo de dor de barriga. Eu ia matando minha bacorinha com o feijão que o
governo mandava.
-Teve uma seca
grande, seu Padre, parece que foi em 83, que o governo obrigou as mulheres a
trabalhar na emergência. Coitada da gente. A gente saia de madrugada para ir
trabalhar. A gente trabalhava carregando carroça, fazendo comida pra os homens
e tudo mais.
-Na seca dos
anos 80, as mulheres trabalhavam na emergência. Era uma verdadeira humilhação.
Teve mulher que ganhou neném debaixo de latadas. Meu Deus, era
sofrimento demais.
-O governo
obrigou as mulheres a trabalhar na emergência. Cansei de ver muitas mulheres
com a barriga saindo pela boca indo trabalhar. E o governo não queria saber. Se
a mulher não fosse, mesmo já pra ganhar neném, tinha o ponto cortado e não
ganhava no final do mês.
-Na seca de
83, eu levava meus filhos pequenos para a emergência. Colocava meus filhos
debaixo da latada, pegava uma carroça e ia carregar terra e fazer mais outras coisas,
que eram serviço de homens. Padre, a gente já foi tão humilhada por esses
governantes. Eles não tinham pena de nós. A gente era tratada de forma tão humilhada,que
quando me lembro, dá vontade de chorar.
-As pragas dos
políticos tiravam proveito da nossa fome e sede. Pareciam urubus em cima de
carniça. Essa gente de gravata e paletó não queria saber do nosso sofrimento,
mas sim do nosso voto. Para eles, o que valia não era a pessoa do sertanejo,
mas o seu voto.
-Os sertanejos
quando chegavam em S.-Paulo, o povo de lá dizia logo: chegaram os flagelados da
seca. Eita humilhação!
-Nos tempos
antigos, nosso transporte era o jumento. E não era todo mundo que podia comprar
um jumento. Esse animal ajudou muito a nós. Coitado do bichinho, só vivia pra
trabalhar noite e dia.
-Naquele
tempo, quem queria estudar, ia pra escola ou a pé ou montado no jumento. Era
muito difícil para pobre estudar. Só rico ia pra capital estudar pra se formar.
Pobre só existia pra trabalhar pro patrão.
-Naquele
tempo, pobre não se formava pra doutor. Não ia pra capital ou cidade grande pra
estudar.Que nada! Isso era coisa das famílias importantes do sertão.
-Eu queria
estudar, mas meu pai não tinha dinheiro pra comprar os cadernos, a farda,
sapato. Tudo era difícil para o pobre estudar.
-Eu me lembro
que quando uma pessoa da família
adoecia, o pai ou mãe ia se humilhar no pé do prefeito ou do vereador. O pai
pedia para o prefeito arrumar uma ambulância para levar o doente pra o
hospital.
-Uma vez, me
lembro como hoje, minha mulher ia ganhar menino, fui até a casa do vereador e
disse assim: vereador, pelo o amor de Deus, minha mulher vai ganhar menino, me
arrume a ambulância. Sabe o que ele me disse? Vou arrumar a ambulância ou outro
carro, agora você vai assumir o compromisso de votar em mim.Eu disse: sim, toda
minha família vai votar no senhor. Foi assim que consegui levar minha mulher
pro hospital.Pobre, naquele tempo, sofria e era humilhado pelos políticos.
-Nos tempos
passados, ogoverno nem ligava para a saúde do povo do sertão. Era difícil ver
um médico. A gente andava seis léguas ou mais em busca de médico. Muita gente
morria em casa porque não tinha assistênciamédica. O pobre quando adoecia,
podia chamar logo o padre.
-O sertanejo
que morava no sitio, quando adoecia era levado numa rede para a cidade. As
pessoas andavam muitas léguas com o doente na rede. E quando chegava na rua,
ainda ia se humilhar na casa do prefeito ou do patrão. Choro só em lembrar desse
tempo. Era muita humilhação. Era demais, Deus me livre.
-De mil, tirava
um que se formava pra doutor. Era muito difícil. Parece que o governo só
privilegiava os filhos de ricos.
-Antigamente,os
filhos de pobres já nasciam sabendo de uma coisa: ser agricultor. Nasciam na
roça, viviam na roça e morriam na Roça.Esse era o destino dos filhos de pobres.
-No meu tempo,
a casa do sertanejo era de taipa, quase caindo, no tempo de inverno, a nossa
casa parecia uma peneira. Coitada da minha mulher, corria pra lá e pra cá,
colocando pano na rede dos filhos pra não molhar os meninos. Era sofrimento
demais.
-Roupa,
calçados, a gente só comprava uma vez no ano, quandocatava e vendia o
algodão.Eu lembro que o pano mais vendido era o tergal e o volta ao mundo. Era
uma roupa pra cada um. A gente comprava o pano na feira e mandava fazer as
camisas e as calças.
-Seu Padre,
pobre aqui no sertão só via a cor do dinheiro quando vendia o algodão.Era
quando a gente pegava num dinheirinho.
-O pai selava
o animal e ia pra feira. Na feiram, comprava bolacha, farinha,rapadura, açúcar
e café.Quando chegava em casa era uma festa. Esse negócio de verduranão
existia. Só rico comia verdura.
-Padre, eu vim
conhecer o que era mação e uva depois de velho. Nomeu tempo, ninguém sabia o
que era isso.
-Eu não tenho
vergonha em dizer que passei muita fome.Lá em casa,Padre Djacy,eram 11
pessoas.Me lembro que chegava a hora do almoço e não tinha nada pra comer.Minha
mãe ficava desesperada. Estou chorando só em lembrar desse tempo.Ah,meu
Deus,que tempo ruim!
-Seu Padre,
naquele tempo, mulher quando se casava,o primeiro presente que recebia era um
moinho pra moer milho. Todo dia a mulher moía milho. Começava pela manhã e ia
até à noite. O moinho era pesado demais.
-A mulher nos
anos atrás moía milho, pisava arroz, pisava sal, carregava lata d’água na
cabeça, cuidava da casa, do marido e dos filhos. A mulher era pau pra toda
obra.
-Antigamente,
a mulher ganhava menino era em casa. Quando chegava a hora de ganhar o menino
ou menina, o marido montava num jumento e ia atrás da parteira. Quando ela
chegava a mulher já estava quase morta de tanta dor. E a parteira tinha mãos santas.
Tudo dava certo. O bebê não morria e a mulher também não. Era coisa de Deus.
Todos meus filhos nasceram em casa, nas mãos da parteira. Essa mulher era uma
santa.
-Em tempo de
eleição, a gente era muito humilhado pelo patrão. Ele chegava na nossa casa e
diz assim: todos vocês estão obrigados a votar no meu candidato. Se não votarem,
vocês vão se arrepender. E a gente tinha que votar no candidato do patrão,
assim era mandado embora. Quem era doido de votar contra.
-Os sertanejos
naquele tempo eram como escravos. Viviam trabalhando prao patrão e ainda eram
obrigados a votar no candidato do patrão. A gente era humilhadodemais. A gente
vivia trabalhando no duro pra o patrão.
-Antigamente,
seu Padre, quem mandava na gente era o patrão. A gente era escravo do patrão. A
gente obedecia em tudo o chefe, ou seja, o coronel.
-Os filhos do
patrão estudavam e se formavam, enquanto nossos filhos não tinham esse direito.
O futuro do filho do patrão era ser doutor, o futuro do filho dos pais pobres
era a roça.Coitado,crescia e morria na roça. A caneta do filho de pobre era a
enxada. Eita sofrimento, meu Deus!
-As coisas no
passado eram tudo difícil. Na casa do
pobre não tinha geladeira, fogão de gás, nem fogão de carvão. Isso eracoisa de rico.
Só na casa do rico tinha isso. Cansei de passar o dia todo soprando o fogo.Toda
hora eu tava soprando o fogo. Minha cara ficava cheia de fumaça. É por isso que
as mulheres num instante ficavam velhas.
-Carreguei
muito pau de lenha nas costas. Eu passava o dia na roça e quando voltava,
voltava cansado, suado, ainda trazia um bocado de pau de lenha nas costas. Meus
ombros ficavam cheios de calos. Era o jeito.
-Pobre não
comprava nem carro nem moto. Pobre só mesmo o direito de possuir um ou dois jumentos.
O jumento era o transporte do pobre. Até pra ir pra missa, a gente ia montado
no jumento. E não era todo pobre que podia comprar um jumento. A coisa era
difícil pro lado do pobre.
-Remédio
naquele tempo era luxo, era coisa de rico. Pobre não tinha condição de comprar
remédio. Tudo era muito caro. O remédio de pobre era raiz de pau pra fazer chá.
-Quando o
pobre ia viajar, ele ia de pau de arara. Passava semanas mais semanas em cima
daquele caminhão levando poeira na cara.
-Padre Djacy,
no tempo passado, pobre só via avião quando passava no céu. A gente corria pra
o terreiro pra ver o bicho passar. A gente via o avião bem pequeninho. Era uma
coisinha lá no céu. O povo ficava admirado e às vezes até com medo daquele
bicho. Tinha gente que dizia que coisa do outro mundo. Uma vez minha tia ficou
com tanto medo do avião que se escondeu debaixo da cama. Coitada dela!
-Uma vez, a
gente tava almoçando quando ouvimos a zuada do avião.Todo mundo deixouo prato
pra ver o avião passar. A gente ficava admirado vendo aquele avião voar.
-Antigamente,
quando o marido ia pra São Paulo, a mulher passava mês e mais mês esperando
notícia. Meu marido colocava uma carta no correio e eu só ia receber a carta
com um mês ou mais. Pra saber noticia do marido era difícil. Eita tempo ruim,
meu Deus!
-Antigamente
pobre não sabia o que era perfume. Isso era coisa de rico. A gente usava mesmo
era outra coisa, sei lá o que era.
-Naquele tempo,
o que mais a gente desejava era sair da miséria, do sofrimento, do abandono. A
gente sonhava que um dia o sertanejo pudesse viver melhor, com mais dignidade.
Fosse tratado como gente, como cidadão, e não como cassaco ou flagelado que só
servia mesmo pra votar no patrão.
-Padre Djacy,
era como Luiz Gonzaga cantava, e era verdade: “faz pena o nortista, tão forte e
tão bravo, viver como escravo no norte e no sul”. Ele tinha razão. Graças a
Deus, de 2003 pra cá, as coisas mudaram muito, e pra melhor. Obrigado, meu
Deus! Obrigado, Frei Damião! Obrigado, meupadimcíçoRomão!
Os anos
passaram e a realidade também. Hoje, os sertanejos, com ar de felicidade,
entusiasmadose admiradoscom o presente, contam uma nova história de vida marcada
por cidadania, justiça e dignidade.
E será no
próximo artigo que veremos esse novo contraste sócio-político-econômico e
cultural. Aguardem!
Padre Djacy
Brasileiro, em 15 de agosto de 2014.
e-mail: padredjacy@hotamail.com
Twitter:
@Padredjacy.